A dentição mista começa quando erupciona o primeiro dente permanente e constitui, do ponto de vista ortodôntico, importante momento do desenvolvimento. São esperadas para esse período grandes transformações proporcionadas pelo crescimento e desenvolvimento da face, assim como, pelas importantes e decisivas mudanças oclusais que ocorrem quando acontecem as trocas dos dentes decíduos por seus sucessores permanentes. O primeiro desafio, portanto, seria o de compreender os mecanismos e processos que envolvem essas transformações de modo a favorecer nossas terapias a partir do momento que é reconhecida a necessidade de intervenção nessa fase. O segundo desafio consistiria em estabelecer objetivos de tratamento, num ambiente de grandes mudanças, que possam nos conduzir ao estabelecimento da dentição permanente de forma ideal, alcançando ainda estética facial e estabilidade nos resultados.
Nessa fase também podemos facilmente reconhecer os referenciais de normalidades que podem variar suavemente conforme os três períodos que compreendem essa fase: o primeiro período transitório, o período intertransitório e o segundo período transitório. De uma forma geral consideramos como referências de normalidade a ocorrência de relação sagital de caninos em classe I, presença de trespasses horizontais e verticais positivos, relação transversal correta com o arco superior envolvendo o inferior por completo e incisivos permanentes alinhados ou com suaves irregularidades posicionais.
Não muito raro nos deparamos com algumas questões envolvendo o tratamento ortodôntico na dentição mista principalmente por parte dos pais ou responsáveis. Muitos deles levam suas crianças para a primeira consulta ortodôntica por indicação de colegas e quase sempre chegam ao consultório com a ideia fixa de que o tratamento ortodôntico deva se iniciar apenas quando a dentição permanente estiver completa. Isso é um equívoco que pode, em alguns casos, limitar nossa atuação e comprometer a obtenção de resultados mais palpáveis. Entendemos como muito oportuno que a primeira consulta ortodôntica aconteça no máximo até os oito anos. Nessa idade a grande maioria das crianças se encontra na dentição mista, no período intertransitório. Nesse momento do desenvolvimento é perfeitamente possível o diagnóstico ortodôntico e mais que isso: nessa idade nosso campo de ação é muito maior por inúmeras razões relacionadas ao crescimento e desenvolvimento da face e ao desenvolvimento da oclusão que ainda estão por acontecer.
As discussões envolvendo a intervenção ortodôntica e/ou ortopédica nessa fase do desenvolvimento é muito comum. As dúvidas em torno dessa intervenção, em geral, se enquadram em alguns dos questionamentos: 1). O que fazer em pacientes que não possuem a dentição completa? 2) Devemos esperar que se complete a dentição? 3) Qual é a oportunidade de tratamento? 4) Se tratarmos na dentição decídua ou mista, evitaremos tratamento posterior? 5) Não realizaremos um tratamento excessivamente longo? E quanto aos custos?
Bem… Antes de qualquer coisa precisamos compreender alguns aspectos que envolvem o tratamento de pacientes que se encontram na dentição mista. Segundo Gregoret (2005) os objetivos do tratamento na dentição mista estariam relacionados a: eliminar hábitos, correção das alterações esqueléticas nos três campos do espaço (transversal, vertical e sagital, nessa ordem), manobras para se evitar danos aos dentes e tecidos de suporte e gerenciamentos de espaços (extrações seriadas, desgastes dos dentes decíduos, protrusão, expansão, etc.). Alguns fatores, entretanto, influenciam a decisão pelo tratamento: cooperação do paciente e o seu elemento motivador, a necessidade do problema e finalmente a fase do tratamento. Precisamos entender o real interesse, o elemento que motiva o desejo por tratamento, seja dos pais ou da criança. Algumas preocupações não são imperiosamente uma necessidade de tratamento e muitas correções, principalmente aquelas relacionadas aos problemas dentários, podem esperar. Finalmente, precisamos conhecer as fases de desenvolvimento. A dentição mista possui três fases como já dissemos. O primeiro período transitório é caracterizado pela erupção dos incisivos permanentes e primeiros molares permanentes. Concluída a erupção desses dentes, entramos no período intertransitório. Nessa fase a criança passa um tempo sem que ocorram trocas de dentes decíduos por dentes permanentes. É um momento muito oportuno para correção de problemas esqueléticos e já, nessa fase, é possível implementar algumas correções ortodônticas, especialmente no final do período intertransitório, imediatamente antes do início do segundo período transitório. Esse último período marca as últimas trocas, ou seja, surgem na boca os caninos permanentes e premolares e, mais adiante, os segundos molares. Nessa última fase, temos a oportunidade de gerenciamento de espaços, oportunidade essa que não existe em nenhuma outra fase de desenvolvimento. Isso pode representar a diferença entre casos muito bem concluídos e casos razoavelmente bem concluídos. Mas repito, apenas nessa fase de desenvolvimento essa manobra é possível.
Três aspectos precisam ser lembrados antes de indicarmos abordagem ortodôntica nessa idade. O primeiro seria a necessidade do tratamento. Nem todos os problemas identificados nessa fase de desenvolvimento, precisam ser necessariamente tratados imediatamente. Alguns casos podem esperar. Segundo: a oportunidade do tratamento. Determinados problemas podem e devem ser tratados nessa fase. Como exemplo, podemos citar os problemas esqueléticos como as mordidas cruzadas anteriores ou posteriores, faltas de espaços importantes, problemas funcionais, discrepâncias esqueléticas verticais (mordida aberta ou profunda) e sagitais (padrões ou maloclusões de classe II ou III), etc. Por último, é necessário entender o elemento motivador da criança e da família. Esses elementos precisam estar alinhados entre si e com o plano de tratamento que será proposto pelo profissional. Tanto a criança como a família precisam estar motivados e alinhados aos objetivos propostos. Esse cuidado é fundamental para o entendimento e sucesso do tratamento.
É nossa prática, nessa fase do desenvolvimento, iniciarmos nossa avaliação pela análise funcional seguida pela avaliação de hábitos deletérios, alterações esqueléticas e finalmente a oclusão. E porque isso? Ora, sabemos que as funções de mastigação, respiração, deglutição, fonação, dentre outras, norteiam o crescimento e o desenvolvimento da face. Se forem identificados desvios nas funções que envolvem o sistema estomatognático, essas devem ser tratadas o quanto antes sob pena de insucessos, recidivas ou mesmo a piora do caso. Funções equivocadas podem, perfeitamente, conduzir a crescimento e desenvolvimento equivocados. A presença de hábitos como sucção digital, de chupeta ou mesmo dos lábios levam a alterações dentárias e esqueléticas que justificam o tratamento interceptativo assim que o problema for identificado, tornando mais fácil e estável o tratamento ortodôntico a seguir. Na dentição mista é possível identificar problemas esqueléticos de qualquer natureza: transversal, vertical e sagital, mesmo que bem no início (melhor ainda!). Além do exame clínico, as análises cefalométricas e de face indicam o caminho a seguir. Vale ressaltar que a análise facial é a mais relevante mas nem por isso podemos descartar ou desprezar as outras análises. Os problemas esqueléticos identificados nessa fase podem ser tratados com muito mais facilidade e com melhor prognóstico. Por fim, nessa idade, é possível identificar problemas dentários, as maloclusões de classe I, II e III de Angle, falta ou excessos de espaços, protrusões ou retrusões dentárias, etc. O gerenciamento do espaço livre de Nance só é possível se a terapia ortodôntica se iniciar nessa fase do desenvolvimento. Depois disso, não mais, nunca mais. Tratar problemas dentários nessa fase parece-nos, por essas razões, mais fáceis. Temos presentes apenas 12 dentes permanentes do total de 28 dentes, excluindo dessa conta os terceiros molares. Se posicionarmos esses 12 dentes permanentes de forma correta dentro do arco e na forma como os dentes superiores se relacionam com os inferiores, onde os outros dentes permanentes farão sua erupção? Resposta: no local correto! Dessa forma, caninos, premolares e segundos molares farão a erupção no local correto e o mais importante: de forma fisiológica. Os dentes estarão naquela posição porque foi lá que eles erupcionaram, simples assim! Isso ao nosso entender, aumentam as chances de estabilidade na medida em que, se forem necessárias movimentações nesses dentes, essas serão pequenas, como as correção de giros, por exemplo.
A abordagem nessa idade possui algumas desvantagens, mas que podem ser administradas. Uma delas é com relação ao tempo de tratamento. Se os dentes permanentes demorarem a fazer a erupção, o tratamento pode atrasar e nem sempre os mecanismos de predição de erupção dentária são aplicáveis com confiança, como a avaliação proposta por Nolla. Outro problema são os segundos molares. Se tiverem um trajeto de erupção muito equivocado, precisarão ser posicionados e essa manobra pode também alterar o tempo de tratamento para mais.
Embora algumas desvantagens possam estar presentes, as vantagens são muito maiores e sempre que possível damos preferência para a abordagem na dentição mista, desde que identificada a real necessidade da intervenção.
Os objetivos comuns a todos os tratamentos ortodônticos não mudam, mesmo para clientes mais jovens. Não podemos esquecê-los: satisfazer a queixa do cliente, oclusão funcional e estabilidade articular, estética facial e dentária, proteção dos tecidos de suporte, estabilidade e vias aéreas superiores liberadas. Reparem a nossa preocupação com a função! Planos de tratamentos ortodônticos que entendem a importância dessa conduta incluem vias aéreas superiores liberadas como objetivo de tratamento, embora não sejamos nós os atores principais na abordagem e tratamento do problema quando existentes. O fato é que precisamos das vias aéreas superiores liberadas para aumentar nossas chances de sucesso a longo prazo. Reparem a preocupação com a estabilidade…